Mc DELLACROIX


onerb: Quando você se entendeu/descobriu enquanto uma travesti?!

DELLACROIX: Porra, eu acho que esse lance de me descobrir enquanto travesti foi mais quando eu percebi que o feminino num corpo com pau incomoda, tá ligado? E ai eu comecei a observar como as pessoas me tratavam a partir da forma como eu me apresentava pra elas, isso com perspectiva na minha estética, na forma como eu quero ser tratada. E também a forma como eu era oprimida, principalmente nas quebradas das quais eu vim. Então foi meio que isso, aprender a lidar com tudo isso, me desconstruindo e construindo novas paradas em mim, a consciência da minha existência marginal por apenas ser corpo e ser como eu quero ser ou o que mais eu poderia ser além do que eu já era. É meio que, a identidade travesti pra mim é a minha busca constante pelo o que eu sou, pelo o que eu quero ser. E claro, todas essas experiências, vivências pertencente a um espaço que o feminino ocupa no meu corpo. E que eu quero e deixo a mesma me hackear.

onerb: Qual a importância da representatividade pra você?
DELLACROIX: Acho que nenhuma, e ao mesmo tempo tem toda importância do mundo, sabe? Porquê tipo, eu entendo que a representatividade é um mecanismo do capitalismo pra gente dar poder pra X pessoas de uma forma como se ela tivesse a obrigação de representar bilhões de pessoas, tá ligado? É meio que foda representar um mar de gente única em sua essência. 
Eu boto fé que cada pessoa é sua própria representação, única. Porque cada um tem uma realidade, suas especificidades, sua personalidade. Eu acho que a importância maior é empoderar essa diversidade, conscientizar essa galera das parada, tá ligado, levar informação.

onerb: Em que momento você teve seu primeiro contato com arte? E qual foi?
DELLACROIX: Acredito que meu primeiro contato com arte foi na dança. Pelos meus 16-17 anos eu fazia Hip-Hop, Stiletto, Vogue e Waaking, a partir daí que eu comecei a ter mais noção do meu corpo enquanto um instrumento artístico. Logo depois eu fui para os palcos atuar e estudar teatro.
Quando eu completei 18 anos, que de fato eu tinha idade pra fazer tudo o que eu quisesse, eu descobri a minha persona drag queen e foi quando eu realmente vivi pra esse mundo artístico. Tinha performance, tinha a maquiagem, o figurino. A dança é o teatro me deram uma base gigantesca de como usar meu corpo ao meu favor.

onerb: Quando tu se entendeu como negra?
DELLACROIX: Eu acho que eu me entendi como negra quando eu comecei a perceber que por alguma razão as pessoas me tratavam diferente. Quando eu entendi todo o racismo estrutural e enraizado que eu sofria na escola quando tinha 10-11 anos. E também quando eu comecei a deixar meu cabelo crescer e me questionar do porque ele não era liso, e nisso todos os procedimentos químicos que eu fazia pra me enquadrar em algo.

onerb: Hoje quem te inspira no meio do rap/funk?
DELLACROIX: Muitas manas me inspiram. Eu sempre falo na Linn da Quebrada por ser alguém que eu tive a oportunidade de conhecer e que o show dela que eu assisti, era exatamente o que eu precisava ver e ouvir pra começar a me despertar essa necessidade de usar a música pra falar da minha realidade também, da forma como eu vivia, que por muito tempo nos calaram e hoje encontramos a voz, nessas linguagens artísticas. Mas claro que não posso esquecer da JUP do Bairro, Danna Lisboa, Rico Dalasam, pessoas que também estão próximas a mim hoje e que me inspiram a todo momento.

onerb: Você tem apoio moral e/ou financeiro da sua família enquanto artista independente?
DELLACROIX: Eu não tenho contato quase que nenhum com a minha família. Hoje que eles tentam uma reaproximação, mas eles lá no interior e eu aqui na capital, trabalhando, sobrevivendo. Eu saí da casa dos meus pais e quebrei esse laço familiar justamente por querer ser alguém independente, que pudesse viver e descobrir a liberdade do meu corpo sem repressão.


onerb: E chegamos ao fim de mais uma entrevista maravilhosa e a Dellacroix vai deixar uma mensagem pra vocês que desejam começar algum trampo independente e tem aquele medo/receio. Se inspire e SE TORNE ÚNICO, ONERB.


DELLACROIX: Porra, eu acho que nessa mensagem eu deixo uma reflexão. Não existe nenhuma receita pra ter sucesso naquilo que se faz. Eu tô a 5 anos utilizando a arte pra falar das coisas que eu sempre quis falar, e utilizando do meu corpo pra ser todas as coisas que eu sempre quis ser. E é legítimo a partir do momento que tudo isso é a minha verdade. 
Na arte eu sempre vi a possibilidade de poder ser livre, apesar de que muitos espaços artísticos não são. Mas ser artista independente, pretx, pobre e travesti é quase que matar um leão por dia, você vai ter que ser SIM 10x melhor que muito artista independente branco, rico. Mas acho que no meio desse processo todo que foi criar o que eu faço hoje, que foi descobrir tudo o que eu poderia ser hoje, não tem preço. E eu uso tudo isso justamente pra adquirir conhecimento. Conhecimento esse que eles (supremacia branca, grande burguesia) não querem que tenhamos.
Então é meio que, vivendo dessa forma, minha vida se conecta com a de outras pessoas, pretxs, travestis, pobres, corpos fora da heteronorma. É isso tudo contrária as estatísticas, isso tudo desafia a política e o sistema da forma como ele funciona. E meu, sei lá sabe, era pra eu estar morta.

Com tudo que sou, com tudo que vivi, hoje eu mais que entendi o que significa resistência. Então pra vocês que estão lendo: resistam, provém que é possível serem vocês e fazer o que vocês querem fazer e acima de tudo, serem corpos livres, serem vocês, serem quem quiserem ser. E se for a sua verdade, é legítimo.

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